Ecos do Cotidiano

Uma coletânea de crônicas que explora com humor, reflexão e nostalgia as nuances da vida cotidiana, das memórias dos anos 80 às complexidades das relações humanas e os desafios da modernidade.

Ontem à noite, embarquei numa viagem no tempo com meu marido, um velho amigo de infância e sua esposa, rumo a um bar que parecia ter sido teletransportado dos anos 80. Era um lugar onde a nostalgia era tão espessa no ar que quase podia ser cortada com uma faca. Pelúcias da Pantera Cor-de-Rosa serviam como sentinelas silenciosas, observando alegremente enquanto revivíamos lembranças meio esquecidas, meio inventadas.

A trilha sonora era uma mistura eclética de A-ha e New Order, com um cantor que parecia ter um carinho especial pelo meu amigo, mencionando-o incessantemente. Esses momentos nos proporcionaram risadas genuínas, daquelas que fazem sua barriga doer e sua alma se iluminar.

O show acabou e nos encontramos em uma conversa agradável com a banda, um momento surpreendentemente pé no chão, considerando o teor surreal da noite. Eu, no meu macacão esvoaçante, sentia-me como uma diva dos anos 80, embora a praticidade da peça fosse questionável, especialmente nas visitas ao banheiro.

Então, como um personagem saído de uma peça de teatro absurdista, surge um indivíduo estranho, talvez um membro da banda, com uma obsessão por “One Good Man” de Janis Joplin. Ele proclamava, com um ardor quase religioso, que essa música, acompanhada de vinho, era a receita infalível para uma noite de amor e paixão. Sua teoria, embora intrigante, soava como uma daquelas lendas urbanas que você quer acreditar, mas sabe que provavelmente não passa de mito.

De volta em casa, e talvez um pouco influenciados pelo Moscow Mule e pela cerveja sem álcool (uma combinação que eu argumentaria ser tão contraditória quanto minha decisão de vestir um macacão), pedimos à Alexa para tocar a música. Sentados no sofá, esperávamos que algum tipo de magia acontecesse. Mas, como era de se esperar, o encanto não se materializou. Afinal, a música é uma arte poderosa, mas não faz milagres.

Esse anticlímax me fez refletir sobre a busca constante por momentos mágicos em nossas vidas. Muitas vezes, estamos tão obcecados em recriar um sentimento ou uma experiência que nos esquecemos de apreciar o presente. A magia, percebi, estava no riso compartilhado, nas memórias revividas e na companhia que eu tinha. A música de Janis Joplin era apenas a cereja no topo de uma noite já perfeita.

E assim, entre jogadas de sinuca e conversas filosóficas, a noite se desdobrou. Ela se tornou uma lembrança querida, um exemplo perfeito de como a vida, às vezes, é mais sobre a jornada do que sobre o destino. E às vezes, sobre como um macacão pode não ser a escolha mais prática, mas definitivamente a mais memorável.

Numa tessitura onde o romantismo encontra a filosofia, narramos a história de um menino loiro de sete anos, cujos olhos se iluminavam à visão de sua mãe. Ela, uma figura de elegância atemporal, com lábios pintados num vermelho profundo, encarnava uma dualidade fascinante entre a beleza e o vício. O ritual do cigarro, entre seus dedos delicados, desdobrava-se como uma coreografia misteriosa, cada movimento permeado por uma nuvem de fumaça que parecia pintar o ar com desenhos efêmeros de desejo e proibição.

O menino, em sua inocência, via na mãe não apenas o amor e o cuidado, mas também uma janela para o mundo dos adultos, repleto de gestos misteriosos e símbolos inexplorados. A oferta do cigarro, um gesto de inclusão e transgressão, marcava o início de uma experiência que se gravaria em sua memória com a força de uma cicatriz indelével.

O trago, uma tentativa de emulação e pertencimento, converte-se rapidamente em mal-estar, um aviso visceral do corpo contra a invasão do estranho e do nocivo. A reação da mãe, misto de arrependimento e cuidado, revela a complexidade dos laços que unem as gerações, entre o desejo de partilha e a responsabilidade de proteção. O leite, símbolo de pureza e origem, oferecido como antídoto ao veneno do tabaco, e os cuidados subsequentes, emergem como rituais de cura e reconciliação, numa tentativa desesperada de reverter o curso dos eventos.
O vômito, expulsão violenta do intruso, torna-se metáfora do processo de aprendizado e amadurecimento, uma purgação que limpa não apenas o corpo, mas também a alma, marcando o tabaco como um limite intransponível, um símbolo de perigo e repulsa.

Crescido, o menino se transforma em um adulto cuja trajetória é marcada por essa memória primordial. Torna-se um pesquisador renomado, cujos estudos o confrontam com a ironia do destino: uma predisposição genética ao vício que ele nunca chegaria a conhecer na prática. O trauma de infância, mais potente que qualquer predisposição hereditária, atua como um escudo protetor, uma lição gravada não apenas na mente, mas no próprio corpo, que se recusa a esquecer as consequências de um gesto de curiosidade inocente. Assim, na complexidade dessa experiência, o adulto encontra uma verdade mais profunda sobre a natureza humana: que nenhum determinismo biológico é capaz de superar as marcas deixadas pelas experiências vividas, e que, em cada escolha renunciada, carregamos as sombras e as luzes de nossas histórias pessoais. A filosofia desse personagem se entrelaça com a sua existência, um testemunho de que as lições mais duradouras são aquelas que carregamos no cerne de nossa própria vida, um mosaico de momentos que definem quem somos e o que escolhemos ser.

Ah, os anos 80, uma década de cores vibrantes, músicas contagiantes e, claro, as inesquecíveis Mastiguinhas da Johnson & Johnson. “Uma por dia”, dizia a propaganda, numa época em que a maior dificuldade era resistir à tentação de transformar o frasco inteiro em um lanche pós-escola. Esse era o desafio: administrar a vontade voraz de devorar aquelas vitaminas coloridas que, confessemos, mais pareciam saídas de uma fábrica de doces Willy Wonka do que de um laboratório farmacêutico.

Avançamos no tempo, e hoje, persuadir uma criança a tomar vitaminas é quase uma arte – uma mistura de psicologia reversa, negociação de reféns e, em alguns casos, uma atuação digna de Oscar para convencer os pequenos de que aquele comprimido vai, de fato, dar-lhes superpoderes. Ah, se as Mastiguinhas estivessem aqui! A ironia é que, na tentativa de imitar os doces, muitas vitaminas atuais acabaram numa terra de ninguém: nem tão gostosas quanto os doces, nem tão “adultas” quanto os comprimidos.

E aqui nos encontramos, na encruzilhada do cringe e da nostalgia, rindo da ingenuidade de acreditar que “uma por dia” era uma regra tão inquebrável quanto as leis da física. Afinal, quem entre nós, criaturas dos anos 80, não olhou para aquele frasco colorido e planejou meticulosamente como poderia, acidentalmente, tomar duas (ou três) e ainda assim manter-se na linha tênue da saúde recomendada?

Nessa viagem ao passado, percebemos que os anos 80 foram pródigos em criar desejos inalcançáveis. Queríamos ser astros do rock como os do Videoclipe “Thriller” de Michael Jackson, ou heroínas destemidas como a She-Ra, mas tínhamos que nos contentar com as pequenas vitórias, como convencer nossos pais de que precisávamos de mais um par de polainas coloridas ou que assistir a mais uma reprise de “E.T. – O Extraterrestre” era essencial para nosso desenvolvimento emocional.

Comparando com hoje, onde tudo é superdimensionado, os desafios da paternidade se transformaram. Agora, não é apenas sobre a vitaminas, mas sobre como equilibrar a tecnologia, a superexposição às telas e o bom e velho brincar lá fora. Quem diria que nos tornaríamos os guardiões do “quando eu era criança”, defendendo o valor de sair para a rua até o sol se pôr, enquanto tentamos decifrar os mais recentes gadgets que nossos filhos manuseiam melhor do que nós.

No final das contas, as Mastiguinhas, com seu mantra “uma por dia”, eram mais do que vitaminas; eram símbolos de uma época mais simples, onde as linhas entre o saudável e o prazeroso eram tão claras quanto as regras do jogo da amarelinha. Hoje, rimos ao pensar no que era considerado cringe naquela época, ao mesmo tempo, em que nos perguntamos: o que as gerações futuras acharão hilário sobre nossos atuais dilemas?

Assim, enquanto navegamos pelos desafios de criar filhos na era digital, talvez devêssemos nos inspirar na simplicidade daquela regra das Mastiguinhas. Não em termos de limitar vitaminas, mas em lembrar que, às vezes, a solução para os problemas modernos pode residir na sabedoria de uma época em que a maior preocupação era se poderíamos, ou não, tomar mais uma daquelas deliciosas vitaminas mascáveis. E quem sabe, em meio a essa reflexão, encontramos a dose certa de equilíbrio para nossas vidas – um compromisso saudável entre o passado e o presente, onde cada dia traz sua própria “vitamina” de alegria e aprendizado.

Mergulhando nas profundezas da história, encontro-me cativada pela figura enigmática e influente de Alexandre o Grande, cuja vida se desdobra como uma rica tapeçaria de ambição, conquista e complexidade humana. Recentemente, fui atraída pela série da Netflix, “Alexandre, o nascimento de um deus”, lançada em 31 de janeiro de 2024, que promete um mergulho profundo nas intricadas dinâmicas que moldaram Alexandre desde sua infância até sua ascensão ao status quase mítico de um líder cujas conquistas ressoam através dos séculos.

A série lança luz sobre a teia complexa de relações, poder e crenças que definiram Alexandre, enfatizando particularmente a influência de sua mãe, Olímpia. Retratada como uma mulher de imenso poder e determinação, Olímpia é suspeita de ter orquestrado o envenenamento de Filipe II para assegurar a ascensão de seu filho. Essa manobra, embora não plenamente documentada pela história, é um exemplo vívido do entrelaçamento de ambição, intriga e a crença na predestinação divina que caracterizou a época.

Essencial na formação de Alexandre foi também a tutela de Aristóteles, um dos maiores filósofos da antiguidade, cujos ensinamentos não apenas incutiram nele uma sede por conhecimento, mas também uma compreensão profunda da filosofia, ética e política. Essa educação filosófica forneceu a Alexandre um quadro para entender o mundo e suas próprias ambições dentro dele, influenciando suas estratégias militares, sua governança e sua visão para um império onde as culturas gregas e orientais se fundiam.

A série também destaca a relação única entre Alexandre e Bucéfalo, seu estimado cavalo, simbolizando a força e a profundidade da conexão entre humanos e animais. Bucéfalo não era apenas um meio para a conquista; era um companheiro leal, cuja bravura e lealdade espelhavam as qualidades admiradas por Alexandre. A lenda de como Alexandre domou Bucéfalo, que nenhum outro conseguia montar, destaca a percepção, a determinação e a abordagem não convencional aos desafios que caracterizavam Alexandre desde jovem.

No cerne da narrativa está a convicção de Olímpia de que seu filho era um semideus, filho de Zeus, uma crença que moldou profundamente a autoimagem de Alexandre e sua abordagem às conquistas. Impulsionado por esse senso de destino divino, Alexandre transcendeu os limites do mundo conhecido, estabelecendo um império vasto através de estratégias militares inovadoras e liderança carismática.

Contudo, ao explorar a vida de Alexandre, somos lembrados de quão diferentes eram as concepções de afetividade e sexualidade na Grécia antiga em comparação com as nossas. Não existia o conceito de homossexualidade como entendemos hoje; a sexualidade era percebida de forma mais fluida, com ênfase na afetividade entre as pessoas. Essa compreensão estendia-se além da Grécia, desafiando-nos a reconsiderar nossas próprias categorizações.

Refletir sobre Alexandre e seu tempo nos convida a questionar os fundamentos da grandeza e do poder. As relações de Alexandre, especialmente sua conexão com Heféstion, interpretadas sob a ótica da afetividade para além dos rótulos modernos, desafiam-nos a reconsiderar as categorias sociais e políticas.

Assim, a série “Alexandre, o nascimento de um deus” serve como um lembrete valioso de que, enquanto seres humanos, nosso desejo de categorizar e definir pode limitar nossa capacidade de apreciar a rica tapeçaria da experiência humana. Ao reconhecer a fluidez das relações e identidades ao longo do tempo, ganhamos uma compreensão mais matizada não apenas de figuras históricas como Alexandre, mas também da complexidade da condição humana em si.
Portanto, ao contemplar a história de Alexandre o Grande, somos levados a uma reflexão filosófica sobre o efêmero da glória e a eternidade das relações humanas. Alexandre, apesar de suas conquistas monumentais e do título de “O Grande”, enfrentou a impermanência de seu império, que começou a se desintegrar logo após sua morte prematura. Essa efemeridade do poder e da influência nos lembra que as conquistas, por mais grandiosas que sejam, são vulneráveis à desintegração e ao esquecimento ao longo do tempo. A morte de figuras queridas, como Heféstion, e a perda de Bucéfalo, tiveram um impacto profundo em Alexandre, sublinhando a importância das relações pessoais e a marca indelével que deixam em nossa existência, muito além das vitórias e das derrotas no campo de batalha.

Ao refletir sobre as nuances da grandeza e do legado de Alexandre, somos convidados a considerar o verdadeiro significado de “ser grande”. Em sua vida, vemos a intersecção de ambição desmedida, genialidade estratégica, profundidade afetiva e uma busca incessante por um propósito maior que transcende o eu individual. Alexandre buscou não apenas expandir seus territórios, mas também disseminar a cultura grega e estabelecer um diálogo entre diferentes civilizações, um testemunho de sua visão de um mundo unificado sob os ideais de conhecimento e compreensão mútua.

Esta reflexão sobre Alexandre o Grande nos leva a uma indagação mais ampla sobre as figuras que denominamos “grandes” na história. Nos convida a questionar as métricas pelas quais avaliamos a grandeza, ponderando se é pelo território conquistado, pelo legado cultural deixado, pela habilidade de liderar e inspirar ou, talvez, pela capacidade de influenciar positivamente a vida das pessoas.

Ao mesmo tempo, a vida de Alexandre nos lembra das complexidades inerentes ao poder e à liderança. As intrigas, as lutas pelo poder e as traições que permearam sua ascensão e reinado refletem a natureza volátil da ambição humana e o preço frequentemente pago pela grandeza. Isso nos faz ponderar sobre a responsabilidade que acompanha o poder e sobre como as decisões de líderes impactam não apenas seu tempo, mas ecoam através das eras. Em última análise, ao contemplar a figura de Alexandre o Grande, somos levados a uma reflexão profunda sobre a natureza humana, a busca por significado e a construção da história. Seu legado, embora marcado por contradições e ambiguidades, oferece uma rica fonte de inspiração e aprendizado. Nos desafia a olhar além das simplificações e a reconhecer a complexidade, a beleza e, por vezes, a tragédia da experiência humana. Ao fazê-lo, talvez possamos encontrar em nós mesmos um pouco da grandeza que buscamos entender em figuras como Alexandre — não na conquista de territórios, mas na capacidade de transcender nossas limitações, conectar-nos profundamente com os outros e deixar um legado de conhecimento, compaixão e humanidade.

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Obrigada! 🙂

2 respostas para “Ecos do Cotidiano”

  1. Avatar de CLAUDIA FERNANDA AMARAL SALGADO
    CLAUDIA FERNANDA AMARAL SALGADO

    Os textos da Fernanda nos fazem mergulhar na história que conta e que incrível reflexão nos traz ao citar Alexandre, temas antigos e atuais.

  2. Avatar de Fernanda Tavares
    Fernanda Tavares

    Obrigada Claudinha! Você estava no “One Good Man”, por isso o encaminhei. Que venham outros encontros e gatilhos de inspiração. ❤️

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